Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
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Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Sabendo que só as mulheres o podem fazer, como se deve dizer: «doador(es)», «dador(es)», «doadora(s)», ou «dadora(s) de óvulos»?

Resposta:

Em Portugal, prefere-se o termo dador/dadora («dador de esperma»/«dadora de óvulos»). Assim, verifica-se que se usa dador para referir, por exemplo, a «pessoa que aceita que, em vida (no caso de um rim, por exemplo) ou após a morte (no caso do coração), um órgão seja retirado do seu corpo a fim de ser transplantado no de um doente» (Dicionário Priberam da Língua Portuguesa). Não sendo este o caso em apreço, o certo, no entanto, é que o Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora (na Infopédia) inclui em dador a subentrada «dador de esperma», «indivíduo que doa o seu esperma para inseminação artificial», do qual se deduz a expressão «dadora de óvulo».
 
Nos dicionários elaborados no Brasil, prefere-se a palavra doador, pelo que este parece ser o termo mais corrente no português brasileiro quando se fala de técnicas de procriação ou mesmo de qualquer outro tipo de doação, de órgãos a bens (cf. Dicionário Houaiss e iDicionário Aulete).

Pergunta:

É correto utilizar-se o termo certo como interrogação/reconfirmação no final de uma afirmação?

Por exemplo: «Faltaste hoje ao trabalho, certo?»

Resposta:

Certo, como sinónimo do marcador discursivo «não é», é aceitável coloquialmente. O seu uso parece decalcado do right inglês, o que pode ser razão para ser rejeitado pela norma mais purista.

Contudo, observe-se que a tradição normativa tem alguma dificuldade em pronunciar-se sobre marcadores discursivos, porque estes ocorrem sobretudo na oralidade, que está mais exposta a fenómenos da moda (como foi o caso da interjeição chau ou tchau, que acabou por enraizar-se). Deste modo, torna-se difícil impor interdições numa modalidade de língua caracterizada justamente pela maior liberdade decorrente da comunicação que se estabelece num dado momento.

Do ponto de vista da linguística (ou, melhor, da sociolinguística) — e já fora do âmbito da produção de juízos normativos —, muito depende também da atitude do falante perante fenómenos sociais como a moda, o que se traduz, por exemplo, no contraste entre o falar cheio de inovações que constitui a gíria juvenil e o falar mais conservador dos mais velhos — questão que nos conduz ao problema dos registos e da variação da língua em função de vários estilos de comunicação.

Pergunta:

«Trocar por notas de cem», ou «Trocar em cem-cem»?

Grato.

Resposta:

Em Portugal, diz-se «trocar por notas de cem», mesmo informalmente, o que não invalida que, em Angola, na linguagem popular, se diga «trocar em cem-cem». No entanto, noutros contextos, por exemplo, no registo mais corrente ou formal, ou até mesmo perante falantes de outras variedades do português (a do Brasil, a de Portugal, a de Moçambique, etc.), convém recorrer à expressão mais neutra — «trocar por notas de cem» —, de modo a facilitar a comunicação. De qualquer modo, fica aqui feito o registo deste uso angolano.

Pergunta:

Como devo fazer a análise sintática da frase «Quem foi Picasso?»?

Resposta:

Considerando que a resposta à frase interrogativa em questão é «Picasso foi x», entendendo por "x" o que se predica acerca do sujeito, ou seja, o predicativo do sujeito, tal como acontece com a expressão sublinhada em «Picasso foi um grande pintor», a análise a fazer é a seguinte:

«Picasso»: sujeito

«é quem»: predicado

«quem»: predicativo do sujeito

Pergunta:

Desde já quero agradecer-vos o enorme contributo que dão no ensino e para o conhecimento da língua portuguesa. Professores que como eu se encontram isolados num país onde os recursos na língua de Camões são poucos, o acesso à Internet é a nossa melhor opção.

Quanto à minha dúvida, prende-se esta com a palavra géiser/gêiser. A vossa resposta 19638 diz o seguinte: «A forma gêiser é o aportuguesamento da palavra inglesa geyser, que tem origem no islandês geysir, "poço que jorra" (do verbo islandês geysa, "ir para a frente; jorrar"). A pronúncia indicada no dicionário da Academia das Ciências de Lisboa é [`Ʒɐjzɛɾ], ou seja, "jêiser", com ditongo ei na primeira sílaba e e aberto na segunda (o acento tónico recai na primeira sílaba).»

Nos dicionários de português a que tenho acesso na Internet aparecem as seguintes descrições:

Infopédia (dicionários da Porto Editora): «Gêiser — do islandês geysir, "idem", pelo alemão Geiser, "idem"»;

Priberam: «Géisir — inglês geyser, do islandês Geysir. Grafia no Brasil: gêiser

Também estranho a descrição dada pelo Ciberdúvidas porque a palavra islandesa para «poço que jorra» é goshver, e a palavra geyser deriva do verbo að gjósa´, que quer dizer, entre outros, «jorrar, brotar, esguichar» e «entrar em erupção». Em islandês, a palavra pronuncia-se "gueizér", sendo o guei do início da palavra lido como em gueixa.

Gostaria se possível que me dessem uma descrição mais pormenorizada de como a palavra entrou n...

Resposta:

Em nome do Ciberdúvidas, agradeço as palavras iniciais.

Em português, aceita-se a forma geyser, pronunciada "gáizer", próxima da atribuída ao inglês americano, embora exista um aportuguesamento, gêiser, que soa "jêizer" (cf. Dicionário Houaiss e transcrição fonética das respetivas entradas no dicionário da Academia das Ciências de Lisboa).1 Parece muito pouco provável que geyser/gêiser provenha diretamente do islandês; o mais plausível é o termo ter chegado ao português por via do inglês, eventualmente pelo alemão, como sugere o Dicionário da Língua Portuguesa da Infopédia — e, já agora, porque não pelo francês? Quem sabe se foram estas três línguas ao mesmo tempo, por intermédio dos livros que chegavam a Portugal ou ao Brasil, que contribuíram para a adoção da palavra em traduções? Não obstante, o facto de a palavra estar atestada pela primeira vez em 1838 (cf. Dicionário Houaiss), numa época (o século XIX) em que o francês atuava como língua de divulgação científica para muitas outras, leva-me a não descartar a hipótese de uma transmissão francesa, pela razão que explico um pouco mais abaixo.2

Assim, relativamente à grafia e pronúncia da palavra em apreço, convém observar o seguinte:

1. Entre os vocabulários ortográficos atualmente disponíveis, o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa da Academia Brasileira de Letras e o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa da Port...