«As línguas evoluem conforme o contexto. Todos os países de língua oficial portuguesa são ilhas linguísticas, não têm nenhum país de fronteira que fale a mesma língua oficial [...].»
O projeto Trovoada de Ideias, cujo financiamento terminou em 2020, tinha como objetivo a inclusão Linguístico-social dos Estudantes dos PALOP no Ensino Superior português. Como nasceu?
A ideia para este projeto começou, em 2014, num congresso realizado em Aveiro, no qual o sociolinguista Paulo Feytor Pinto apresentou uma oficina de português académico, desenvolvida na Escola Superior de Educação de Setúbal, com estudantes angolanos, após ter constatado que havia dificuldades de entendimento do português de Portugal e que isso estava a gerar segregação. No ano seguinte, Paulo Feytor Pinto veio ao Iscte intervir sobre o assunto e, junto com os estudantes angolanos presentes nesse workshop, no âmbito dos Encontros Mensais sobre Experiências Migratórias (CIES-Iscte), decidiu-se criar um grupo focal, tendo em conta que, quer estudantes quer docentes, sentiram que também aqui havia essa necessidade dos estudantes de língua oficial portuguesa que aqui vêm estudar. Em 2016, fizemos dois grupos focais, com estudantes angolanos e guineenses, docentes e técnicos do Serviço de Ação Social (SAS) do Iscte e de outras instituições do Ensino Superior. Nessa altura, os estudantes expressaram os sentimentos de discriminação relacionados com a forma de se expressaram e referiram-se ao português como a “língua amiga que se torna inimiga”, uma expressão que adotámos.
A partir de 2017, começámos à procura de financiamento para a instalação de uma oficina no Iscte. Nesse ano, conseguimos introduzir uma unidade curricular de português académico, enquanto competência transversal, por isso integrada no Laboratório de Competências Transversais (LCT). Em 2018, o projeto Trovoada de Ideias encontrou finalmente financiamento.
E como se desenvolve o projeto?
Trata-se de um projeto de investigação-ação, pelo que estamos em constante reflexão e adaptação do modelo de intervenção nas suas várias etapas. Ao nível do estudo, precisámos de conhecer qual o contexto sociolinguístico de origem de cada um dos estudantes, para demonstrar que não estávamos perante falantes da variedade do português de Portugal, ao contrário do que tem sido o entendimento generalizado na sociedade portuguesa. Depois, trabalhámos em ferramentas para melhor adaptação de todas as partes envolvidas: estudantes e toda a comunidade académica.
Existe alguma literatura sobre o tema das variedades do português?
Já existe muito trabalho realizado sobre esta realidade por linguistas e sociolinguistas, seja nos países de origem, seja em Portugal. As línguas que se falam, assim como a variedade do português, dependem de muitos fatores, em cada país e, por vezes, por regiões de cada país. Há línguas que são usadas na família, outras nas atividades económicas, no exercício de cidadania, nos meios de comunicação. Por exemplo, em Moçambique, o português é falado apenas por 16,6% da população como língua primeira e 30,7% como língua adicional: ou seja, no máximo, cerca de metade da população moçambicana terá conhecimento e proficiência em português, embora haja, por parte dos estudiosos moçambicanos, algumas dúvidas sobre o nível e tipo de proficiência destes 50%. E, claro, tudo depende das regiões, porque se retirarmos as cidades principais, onde o português será falado como língua segunda ou terceira, o português perde muita relevância quotidiana, e nalguns casos não tem nenhuma.
Já há algum mapeamento dessa diversidade nos vários países em que se fala o português?
Moçambique é o país em que esse mapeamento está mais avançado, porque desde os anos 1980 que se fazem estudos, e há cada vez mais especialistas a investigarem a realidade moçambicana e, também, a identificarem a caracterizar a variedade do português de Moçambique. Em Angola, só recentemente se iniciou um estudo mais detalhado para um reconhecimento nacional da sua relevância na realidade sociolinguística angolana. São Tomé será o país em que há uma maior percentagem da população que tem o português como língua primeira. Em Cabo Verde, o português é a língua oficial, mas o cabo-verdiano, um crioulo de base lexical portuguesa, é a língua nacional, sendo que o português é a segunda língua da maioria da população.
O português é relevante no sistema de ensino desses países?
Em todos eles, o português é a língua oficial no sistema de ensino, com exceção de algumas zonas de Moçambique, onde existe educação bilingue (português e línguas nacionais reconhecidas regionalmente). Em Angola, a língua portuguesa tem vindo a afirmar-se crescentemente como língua primeira, ou seja, aquela que se fala no dia a dia. Embora a língua primeira com maior percentagem de falantes continue a ser o umbundo, apesar de não chegar aos 50%, o que dá bem nota da fragmentação existente. Mas, por exemplo, em Cabo Verde, que é de longe o país com maiores índices de escolarização, e em que o português é a língua do sistema de ensino, o cabo-verdiano é dominante como língua primeira, porque é a língua que, de facto, as pessoas utilizam no seu dia a dia.
Como se geram tantas variantes do português?
As línguas evoluem conforme o contexto. Todos os países de língua oficial portuguesa são ilhas linguísticas, não têm nenhum país de fronteira que fale a mesma língua oficial (estima-se que a língua portuguesa faça fronteira com 340 línguas diferentes, pelo que acabam por estar em contacto permanente com outras línguas, e isso influencia muito. Isto já para não falar nas realidades internas: basta verificar as variedades que encontramos em Portugal. Por exemplo, numa das línguas nacionais reconhecidas em Portugal, o mirandês, encontramos variedades conforme a localidade da região de Miranda do Douro em que nos encontremos.
E como é a realidade na Guiné-Bissau, de onde é originária a maior parte dos estudantes africanos do Iscte?
Na Guiné-Bissau, somando a língua primeira com a segunda, estima-se que apenas 10% da população fale português. Como língua franca, a maioria fala o guineense, um crioulo que tem algumas semelhanças com algumas variedades do cabo-verdiano.
A maioria dos estudantes africanos que chegam a Portugal serão de classes mais elevadas e terão tido mais acesso ao português?
Há esse efeito seletivo, mas, mesmo assim, existe um número significativo de estudantes que revelam dificuldades, não pela origem social, mas antes dependente da sua socialização linguística anterior à sua chegada a Portugal para estudar. Eles são falantes de português, mas provêm de uma realidade sociolinguística e, por isso, também socioeconómica em que o português pode não ter a mesma relevância quotidiana e cidadã que tem cá. Tudo depende dos percursos individuais e, por exemplo, das estratégias familiares de reforço do português. Ou, noutros casos, fazem a licenciatura no Brasil e chegam a Portugal para fazer o mestrado, o que ainda lhes acrescenta o contacto com outra variedade, o que lhes confere a vantagem de passarem por uma socialização mais imersiva, porque passaram por um país onde se fala português em todo o lado, ao contrário do que acontecia na Guiné-Bissau.
Que estratégias se podem adotar para lidar com este problema?
Em primeiro lugar, colocaria a consciencialização de toda a comunidade académica, em especial os docentes, para este problema. Muitas pessoas não têm a noção de que, sendo o português a língua oficial nesses países, o contacto que com ela têm alguns destes estudantes possa ser tão diminuto. Muitas vezes, confunde-se essa dificuldade linguística com a incapacidade ou défice de formação do estudante. Não se trata de baixar o nível de exigência, porque não é isso que estes estudantes estrangeiros pretendem ao escolher Portugal como seu país de destino, mas sim o prestígio dos diplomas portugueses, mas de ter em conta as diferentes realidades sociolinguísticas específicas a muito destes estudantes. Nesse sentido, o projeto também tem levado a cabo o estudo de biografias escolares e linguísticas de estudantes internacionais africanos angolanos e guineenses, de licenciatura, mestrado e doutoramento, assim como a construção de uma brochura de orientações pedagógicas para docentes de IES portuguesas, “Ensinar e Aprender na Diversidade” (versão digital e papel), que resultou da discussão de sete grupos focais, realizados entre 2019 e 2020, envolvendo estudantes, docentes e técnicos/as superiores.
Além desse trabalho de consciencialização, criaram ferramentas específicas destinadas a esses estudantes?
No âmbito do LCT, foi aprovado, durante o decorrer do projeto, um pacote de Unidades Curriculares em competências transversais que podem ser de acesso gratuito aos estudantes nacionais dos países da CPLP, entre outros contingentes específicos de entrada no Iscte. No âmbito do projeto Trovoada de Ideias, criámos, em 2017, uma UC específica em Português Académico (integrada também no LCT), com uma abordagem pluricêntrica em relação à língua portuguesa e suas variedades, a partir da qual chegámos a ter quatro turmas, envolvendo cerca de 75 alunos, entre 2018 e 2020. Complementarmente, criou-se uma versão online do português académico integrada nos cursos online do LCT, e um Livro do/a professor/a – Recursos Didáticos de Português Académico (sob a coordenação do parceiro APEDI) focando no pluricentrismo da língua portuguesa e na realidade do público-alvo do projeto.
Além disso, a equipa do projeto faz frequentemente o acompanhamento personalizado de estudantes, no sentido de identificar as suas necessidades e encontrar soluções. Outra forma de apoio é o Projeto de Mentorado PALOP (buddy mentoring), através da qual se formam estudantes mentores, que acompanham os que têm mais dificuldades, ou chegaram há menos tempo. A equipa de mentores recebe uma formação certificada (nove horas presenciais e 38 horas de acompanhamento), coordenada pelo Serviço de Ação Social, em parceria com a coordenação do projeto, o LCT e outros parceiros. Inclui sempre um estudante português, que tem mais informação sobre o nosso sistema de ensino e a nossa realidade, e um estudante nacional dos PALOP, que conhece melhor as realidades dos estudantes que chegam. Chegámos a ter 28 mentorandos e 18 mentores. Esses mentores acabam por ser um ponto de ajuda importante, não apenas na vida académica, mas na vida quotidiana. Paralelamente, surgiu o Núcleo de Estudantes Africanos do Iscte, cuja colaboração tem sido importante, por exemplo, na realização, em colaboração com grupos informais de estudantes nacionais da Guiné-Bissau, de encontros regulares, de forma a que os estudantes possam expor as suas dificuldades, sejam elas relacionadas com a vida em Lisboa, o pagamento de propinas [mensalidades], os vistos, ou com as dificuldades derivadas das circunstâncias de confinamento pandémico, nomeadamente: acesso às aulas online, à internet e a computadores, apoio no acesso a competências transversais, e apoio na organização de eventos por iniciativa dos próprios estudantes.
O projeto Trovoada de Ideias terminou?
Em termos de financiamento do Alto Comissário para a Migrações terminou, em 2020, sendo que estamos a terminar a elaboração dos resultados. De alguma forma, está a ter continuidade através dos encontros quinzenais que realizamos. As outras atividades prosseguem. Por exemplo, encontra-se em fase de planeamento recuperar os estudantes mentores, iniciativa que se revelou muito importante na sua fase de arranque, após uma pausa no confinamento. E estamos a dar apoio em competências transversais a grupos mais pequenos, mas mais direcionado às necessidades especificas. Teremos de perceber mais à frente qual a sustentabilidade desta abordagem mais direcionada, que obviamente exige mais recursos da parte de todos os parceiros envolvidos. Sinto que o que ainda falta fazer é o trabalho de maior consciencialização de toda a comunidade académica sobre as realidades específicas destes estudantes, assim como de todos os estudantes que se desviam da conceção ainda persistente do que se espera que seja um/a estudante-padrão. Nos grupos focais, os estudantes apontaram a falta de representatividade e diversidade nos eventos realizados sobre a sua realidade, nomeadamente a necessidade de inclusão de mais temas sobre as diferentes realidades dos países da CPLP, por exemplo, mas também da falta de envolvimento por parte dos estudantes. Mesmo na parte académica, há referências constantes a realidades europeias e americanas, mas não às africanas, a partir das quais poderiam não apenas criar pontes com a matéria lecionada, como entender as outras realidades que lhes são menos conhecidas, e trazer contributos para a sala de aula e a comunidade académica no geral. Até os trabalhos de investigação sobre estes temas são, referem, muito eurocentrados. Tem ainda sido discutido, não apenas no Iscte como noutras Instituições de Ensino Superior, a relevância de se criar um ano ou semestre “zero”, enquanto modo ideal de integração de estudantes (aliás, já aplicado nalguns contextos de ensino superior) – em que todos os estudantes, nacionais PALOP ou não, que tenham ainda necessidades específicas em competências transversais, pudessem primeiro solidificar essas mesmas competências.
Este projeto gerou algumas reações negativas, ou de incompreensão?
Sim. De início houve alguma reação, porque algumas pessoas temeram que, com o projeto, estivéssemos a criar algo que acentuaria a segregação, quando o nosso objetivo é efetivamente combater a segregação existente e dar mais visibilidade e valorização à presença destes estudantes no ensino superior em Portugal.
Entrevista incluída no n.º 3 da revista digital Entrecampus do Iscte-Instituto Universitário de Lisboa.