« (...) Neste romance, a história não é uma categoria imutável e fixa, mas a contínua respiração da realidade, rio cujas águas nunca param e nunca se repetem.(...)»
Não creio que as classificações acrescentem o que quer que seja à fruição de uma obra de arte, seja ela literária ou de outra qualquer natureza; mas também não penso que a prejudiquem. Por isso, ao terminar a leitura de Memorial do Convento, ainda sob o império da fascinação que ela me provocou, surpreendi-me a interrogar: que livro é este? Que escreveu, que quis José Saramago escrever? Um romance histórico? Um romance realista? Uma alegoria? Uma parábola? Uma epopeia? Um conto de fadas? Uma história de amor? (…) A resposta surgiu, inevitável, irrecusável por assim dizer: Memorial do Convento é tudo isso, um caleidoscópio, […] um espelho do real reinventado, diverso e complexo, à imagem e semelhança do mundo e dos homens que nele habitam e o fazem avançar. (…)
Este romance não é apenas um romance histórico, a sua função transcende os limites cronológicos do quadro histórico em que à primeira vista parece encerrar-se (…). A cada passo surgem referências a acontecimentos que virão a produzir-se muito para além do marco temporal da história que nos é contada — a propósito dos damascos carmesins e dos panos verdes que ornamentam o coro da Igreja alude-se ao «gosto português pelo verde e pelo encarnado, que, em vindo uma república, dará bandeira» (…). É que, neste romance, a história não é uma categoria imutável e fixa, mas a contínua respiração da realidade, rio cujas águas nunca param e nunca se repetem.
A luta de classes. De outra coisa não fala este romance que por isso mesmo é também um romance realista — e uma epopeia. Às duas epígrafes que o autor lhe antepôs — uma do Padre Manuel Velho, a outra de Marguerite Yourcenar — poderia ter acrescentado uma terceira, extraída do conhecido poema de Brecht intitulado «Perguntas de Um Operário Letrado», que começa por estes três versos: «Quem construiu Tebas, a das sete portas? / Nos livros vem o nome dos reis. / Mas foram os reis que transportaram as pedras?» é a uma pergunta análoga que o Memorial dá resposta. Para assegurar a sua progénie, um rei beato promete erigir um convento de franciscanos na vila de Mafra. Mas são os servos da gleba que, com o seu sangue e o seu suor hão-de construí-lo, homens vindos de todos os cantos do país, atraídos pela esperança de melhor salário, levados à força outros como se gado fossem (…).
Com tudo isto, ficou ainda por dizer que o romance deve muito da sua força narrativa ao estilo incomparável de Saramago, ao seu perfeito domínio da língua portuguesa, a que este livro é uma permanente homenagem, à opulência de uma escrita em que o extremo rigor e a liberdade estreme se conjugam, numa rara aliança em que nenhum deles é sacrificado pelo outro e antes mutuamente se enriquecem.
Cf. O que Saramago nos ensina + O legado atual de José Saramago, contra o mito do «autor difícil»
in Memorial do Convento, José Saramago, 25 anos da 1.ª edição: A recepção da crítica na época, Lisboa, Caminho, s.d.