« (...) [O] primeiro passo para nós, angolanos, será livrar-nos do complexo ideológico de que "português é a língua do colono", assumindo com tranquilidade que o referido idioma é e deve ser considerado uma língua nacional angolana, como as demais. (...)»
Língua é assunto que costuma gerar paixões, sobretudo quando entrelaçado com a história e a política, as quais, por sua vez, não escapam do olhar ideológico. O modo como tem sido discutida em Angola a questão do estatuto e do papel da língua portuguesa é um exemplo perfeito do que acabo de dizer.
O meu ponto de partida é que, por causa dos equívocos ideológicos com que a questão tem sido tratada, Angola não possui uma política objetiva e afirmativa em relação à língua portuguesa. Como resultado, certas decisões tardam de mais em ser tomadas, com as consequências conhecidas: a degradação crescente do domínio da língua portuguesa, a começar pela leitura e a compreensão de texto, já para não mencionar a escrita.
A ausência dessa política objetiva e afirmativa relativamente ao português está na contramão, entretanto, da sua expansão. De acordo com o censo de 2014, a língua portuguesa é o primeiro idioma falado em casa pelos angolanos (um pouco mais de 71%), seguido do umbundo (quase 23%). A tendência será continuar a crescer, à medida que o processo de urbanização, que já ultrapassou os 60%, se for alargando, combinando isso com o aumento do número de jovens e a mobilidade territorial dos angolanos.
A pergunta que nos pomos, muitas vezes, é que língua portuguesa é essa que os angolanos falam. Quando mas virou "mais" e sou é substituído por "só", por exemplo, a resposta pode ser perturbadora. Isso não deve ser resolvido pela "criatividade popular", mas pela escola. Esta precisa de ter balizas (normas ortográficas, gramática, vocabulário, etc.), para ensinar a língua portuguesa de acordo com as transformações que a mesma vem sofrendo entre nós. O que – espero – não passará pela "normalização" de erros grotescos, como mas virar "mais".
Para isso, o primeiro passo para nós, angolanos, será livrar-nos do complexo ideológico de que «português é a língua do colono», assumindo com tranquilidade que o referido idioma é e deve ser considerado uma língua nacional angolana, como as demais. Sim, quanto à origem, o português não é uma língua nacional angolana, mas as outras sê-lo-ão? Talvez com exceção do umbundo e do kimbundo, todas as outras línguas angolanas são faladas por comunidades, digamos assim, transfronteiriças, ou seja, na sua origem, não são exclusivamente nacionais. Sem esquecer que os povos bantos que se tornaram a maioria demográfica em Angola eram estranhos ao seu território (alguns chegaram após a chegada dos portugueses).
Dois fatores fazem do português uma língua nacional angolana: a pertença histórica e o alcance. De facto, a história - e só ela - explica por que razão os povos falam determinadas línguas. Em relação a pertença histórica, portanto, o português é tão angolano como as restantes línguas existentes no país, pois foi nacionalizada pelos angolanos (o mesmo sucedeu com a mandioca e o milho, originários da América do Sul), que deliberadamente se apropriaram dela e há muito têm contribuído para a sua formatação e expressão. Quanto ao alcance, é por todos reconhecido que o português é a única língua de comunicação nacional dos angolanos e fator da sua unidade, o que, aliás, esteve na base da opção dos líderes independentistas em torná-la a língua oficial do país
Da leitura dos resultados do censo de 2014 que atrás referi em relação ao domínio das línguas existentes em Angola por parte da sua população, emerge, aliás, uma grande conclusão: as autoridades nacionais fizeram pela expansão da língua portuguesa muito mais do que os colonizadores em cinco séculos de presença no território angolano. Os números são claros: Angola é hoje o segundo maior país de língua portuguesa do mundo, depois do Brasil.
Por tudo isso, o país precisa de uma política assertiva em relação à língua portuguesa. Internamente, é preciso fazer duas coisas: melhorar urgentemente o seu ensino, o que passa pela formação massiva de professores de qualidade e também pelo estabelecimento de uma norma do "português angolano", a elaborar por especialistas; e procurar harmonizar no ensino a utilização, a grafia e outros aspetos, a decidir, a difusão da língua portuguesa com as línguas nacionais de origem africana que são faladas igualmente no território nacional (incluindo o lingala, língua de comércio criada ao longo do rio Zaire, que entrou em Angola após a independência e também já foi nacionalizada).
Uma nota final para reiterar a defesa que há muito tenho feito noutras circunstâncias da necessidade de ratificação, por parte de Angola, do Acordo Ortográfico de 1990. Faço-o por uma razão de base: a tendência geral (que poderia, inclusive, ser maior) para a simplificação da grafia e, sobretudo, para a prioridade dada à fonética ao invés da etimologia corresponde ao interesse estratégico do país em aprofundar e consolidar a difusão do português, que, originariamente, é uma língua segunda para a maioria dos angolanos.
Tudo o resto (defesa da inclusão no português de palavras de origem banta, esquecendo-se que isso já acontece há séculos, compatibilização das grafias da língua portuguesa e das línguas angolanas de origem africana, receio de uma alegada "colonização linguística" por parte do Brasil, risco de dependência da indústria gráfica estrangeira) é confusão conceitual, falso problema ou mito.
Para mim, é um insondável mistério assistir a alguns intelectuais angolanos defendendo teses sebastianistas em relação à grafia da língua portuguesa, sobretudo quando tal defesa é misturada com um discurso alegadamente "bantuófono".
[N. E. – Ler também "Português, língua nacional angolana – 1" e "Português, língua nacional angolana – 2", em que o autor dá maior desenvolvimento ao tema.]
Artigo publicado em 5 de julho de 2020 no Diário de Notícias.