«[...] [O] léxico acompanha e testemunha os avanços das sociedades e do pensamento [...].»
Tanto se fala hoje de racismo e manifestações «contra o antirracismo» (leia-se: a favor do racismo) que dei comigo a refletir sobre esta e a palavra xenofobia. Tive dúvidas quanto à pertinência do tema, mas elas dissiparam-se ao consultar o sítio web do dicionário Merriam-Webster, que, a propósito das diferenças entre racism and xenophobia, nota que nunca é bom sinal verificar um substancial acréscimo das consultas de termos relacionados e indesejáveis como racismo e xenofobia, como acontece desde o aparecimento da COVID-19 e subsequente pandemia global (tradução minha).
A palavra racismo terá entrado em português no século XX, proveniente do francês, com atestação de 1902, na sequência da exploração política da noção de raça, diz-nos o Dictionnaire Historique de la Langue Française; já o Oxford English Dictionary indica-a como tendo sido cunhada em 1902 pelo general norte-americano Richard Henry Pratt. Racismo é um internacionalismo, i.e. tem palavras cognatas (com a mesma origem e estrutura) em diversas línguas. A Infopédia propõe três aceções para racismo: «teoria sem quaisquer fundamentos científicos que defende a existência de uma hierarquia entre grupos humanos, definidos segundo carateres físicos e hereditários como a cor da pele, atribuindo aos grupos considerados superiores o direito de dominar ou mesmo suprimir outros considerados inferiores», «atitude preconceituosa e discriminatória contra indivíduos de determinada(s) etnia(s)» e «sistema político ou social que promove a discriminação de determinada(s) etnia(s) ou grupo(s)». Sobressai o pedagogismo do lexicógrafo, ao explicitar que o racismo, enquanto teoria, não tem fundamento científico e, enquanto atitude, é preconceituoso. Afinal, os dicionários são também recursos pedagógicos.
O conceito de raça foi desacreditado ao longo do século XX, primeiro pela antropologia, depois pela biologia e a genética. Fala-se hoje de etnias, categorizadas a partir de aspetos de natureza sociocultural e linguística (que vinculam os seus membros ao grupo e diferenciam este dos demais grupos) e já não em termos de carateres físicos ou hereditários partilhados. De etimologia grega, etnia terá entrado no português no século XX, por via do francês, língua em que é tratado como empréstimo culto, de 1896, embora o adjetivo ethnique seja usado desde o século XIII. O Merriam-Webster indica 1941 para entrada do nome ethnic em inglês.
Para o internacionalismo xenofobia, a Infopédia apresenta duas aceções: «antipatia ou aversão pelas pessoas ou coisas estrangeiras» e «preconceito ou atitude hostil contra o que é de outro país ou de outro meio». A palavra terá entrado em português no século XX pelo francês, onde é atestada no final do século XIX. O Merriam Webster assegura-nos que a primeira atestação em inglês ocorre no Daily News, já em 1880.
Que nos contam as palavras racismo e xenofobia?
Antes de mais, nomeiam conceitos relacionados (e por isso frequentemente confundidos) mas diferentes e são palavras surpreendentemente recentes, ambas cunhadas primeiro em inglês. A xenofobia ganha nome em Inglaterra, associada a termos como xenomania ou jingoism, todos da mesma época (1870-1880). O conceito de “racismo” ganha nome nos EUA, no início do século XX, embora as crenças sobre a supremacia dos europeus e as práticas racistas remontem ao colonialismo europeu. É provável que as palavras tenham circulado na sociedade antes das primeiras atestações registadas. Em português, ambas chegam com relativo atraso, algures no século XX, e por meio do francês, a grande referência cultural portuguesa até meados desse século. Racismo é semanticamente mais abrangente (teoria, atitude, sistema político ou social), implica a crença de que algumas “raças” são superiores e a tentativa de racionalização dessa crença. Por seu turno, a xenofobia é apenas sentimento, preconceito, muito menos orgânica e teorizada do que o racismo (nomeando o medo ou fobia do diferente, do desconhecido, digo eu).
Seguramente os especialistas em história e ciências sociais justificarão estes factos lexicológicos. Eles permitem demonstrar que o léxico acompanha e testemunha os avanços das sociedades e do pensamento e, ainda, que as línguas vivas acolhem naturalmente as palavras de que necessitam em cada momento e se enriquecem também deste modo.
Artigo da linguista Margarita Correia publicado no Diário de Notícias de 25de agosto de 2020.